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Santeria: os objetos sagrados de Jacqueline Almada

Jacqueline Almada é uma artista de 53 anos que produz oratórios e relicários em Londrina. Santeria, sua marca, atua já há 15 anos em torno das figuras de santos, mas não só. Se os retalhos, acessórios e biscuits envolvem imagens de Nossa Senhora, no trabalho de Jacqueline eles também encontram a deusa Kali, os Orixás, Budas e Frida Kahlo.

Nessa linguagem múltipla, as esculturas vêm às vezes banhadas em tinta, inteiras azuis, inteiras vermelhas. Outras vezes, o trabalho junta fitas do Senhor do Bonfim, rendas delicadas, flores miúdas. O conjunto da obra de Jacqueline é colorido, portanto, festivo, mas também é sólido, com cores saturadas e objetos do mundo. No fim, há um sincretismo evidente, mas também sobressai o misticismo brasileiro – aqui dialogam o sagrado e o pagão.

É assim que a religiosidade, esse tema central do trabalho de Jacqueline, se torna então em algo mais. Algumas vezes, remete àquela senhorinha que tem a santa virgem em sua cabeceira, vai à missa. Outras vezes, o trabalho nos remete mesmo a essa mulher artista, que também é um portal no mundo, um sagrado que se manifesta. Por meio do seu trabalho, Jacquelie Almada parece disposta a elevar sagrados e profanos ao mesmo altar e, talvez por isso mesmo, esse sagrado acaba descendo ao nosso reino diário, se humaniza.

Intervalo: Bom, primeiro queria que você contasse um pouco sobre o que é a Santeria, quando começou e o que ela faz.

Jacqueline Almada: Santeria Objetos é uma marca de artefatos religiosos que mistura a diversidade da religiosidade Brasileira, festas populares e muitas outras crenças, religiões diversas, figuras inspiradoras e que se transformam em objetos que tanto poderão ser somente objetos decorativos, quanto objetos de proteção ou adoração, dependendo dos olhos e sentimentos de quem os adquire.

Em 2004, decidi iniciar uma pesquisa sobre a arte dos relicários, e iniciei uma pequena produção que começou a ser comercializada na loja de uma amiga. Logo em seguida, em 2006, encontrei uma grande amiga, a cantora e atriz Edna Aguiar que, ao conhecer meu trabalho, me convidou para fazer uma exposição durante um dos seus shows. A partir disso, fizemos um projeto para um espetáculo cênico-musical onde falaríamos sobre o sincretismo religioso. O trabalho recebeu o nome de Santeria – o caminho dos santos. Neste projeto iniciei a pesquisa sobre o sincretismo e assim idealizei e confeccionei o cenário. O cenário era composto por Estandartes e Relicários Sincretizados, havia um Orixá e seu santo católico correspondente no sincretismo. Este projeto foi patrocinado pela Secretaria de Cultura de Londrina e circulou durante os anos 2007/2008 com shows em diversos espaços da cidade. Foi onde iniciei, também, meus trabalhos como Produtora Cultural.

Após estes anos, o projeto foi finalizado e eu pedi aos amigos a permissão para continuar usando o nome em meu ateliê e marca. Então Santeria Objetos será para sempre o caminho destes santos todos.

Intervalo: Quando eu observo o trabalho da Santeria eu sempre fico pensando sobre esse tempo que a gente dedica a um fazer, como um tempo que a gente não dedica a outra coisa, um tempo que a gente ocupa, necessariamente, um tempo de presença. Queria que você falasse um pouco sobre o fazer da Santeria, a prática, como é esse trabalhar?

Jacqueline Almada: Bem, acho que o fazer artístico tem suas variações de pessoa pra pessoa, né mesmo?! Para mim, eu sou meio metódica e não consigo criar e trabalhar no caos. Gosto de estar bem e aproveitar tudo que este momento de entrega pode me proporcionar, sem ter que dividi-lo com outras coisas! Não consigo fazer isso e ao mesmo tempo outras atividades, na verdade a gente até consegue, né, mas prefiro não! Gosto de estar de corpo e alma presentes, focada, gosto dos objetos necessários para este trabalho em ordem e gosto de estar só.

Na verdade, tenho cá meus métodos, apesar deles passarem por mudanças, obviamente. Depois de tanto tempo, pandemia, coisa e tal, mantenho uma certa rotina para iniciar este trabalho. Para além do estar bem comigo e, como é um trabalho que demanda uma energia, gosto de estar preparada para isso. Jamais vou criar doente, com a cabeça perturbada. Na real, durante uma crise existencial na pandemia, isso até aconteceu e foi bacana a experiência e o resultado, porém, não é a forma ideal para mim. Gosto de entrar em contato com os materiais, sentir, ao mesmo tempo já estou verificando se o que pretendo usar está ok, se há necessidade de compras, etc... Por fim, gosto de fazer muitos objetos de uma só vez, tenho uma “chuva de ideias” quando inicio este processo e gosto de fazê-los ao mesmo tempo. Normalmente coloco no papel minhas ideias, depois vejo todos os materiais disponíveis e em seguida passo para a confecção em si. Em média faço de 10 a 15 trabalhos de uma só vez. Depois tiro um tempo até que venham novas inspirações.

minha mãe era católica daquelas que tem vários altares e imagens de santos em casa, mas não era totalmente carola, eu tenho cá pra mim que ela gostava mesmo era das imagens e nem tanto de ir à missa!

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Intervalo: O trabalho da Santeria tem uma força religiosa evidente, né, a começar pelo nome. Parece que o carro chefe são os oratórios, mas também tem os escapulários, estandartes... E é tudo sempre colorido... Queria que você falasse um pouco sobre como você enxerga o mundo religioso, como você vive a sua própria espiritualidade.

Jacqueline Almada: Bem, eu venho de uma família mineira, minha mãe era católica daquelas que tem vários altares e imagens de santos em casa, mas não era totalmente carola, eu tenho cá pra mim que ela gostava mesmo era das imagens e nem tanto de ir à missa! E meu pai era espírita. Me lembro de ir mais com meu pai “tomar um passe” do que ir à missa com minha mãe.

Pois bem, acho que vem daí essa mistura que sou. Não gosto de dogmas, não encontrei um caminho pontual para exercer minha religiosidade. Acredito sim em um Deus, mas que não se parece com os que as religiões vendem por aí. Acredito em energias, na força do amor, em muitas coisas. Inclusive ao fazer este meu trabalho, que é essa mistura de tudo que é sagrado, acredito estar praticando essa minha religiosidade. Para, além disso, medito, tenho meu altar sincretizado total, acendo velas, incenso de limpeza sempre que limpo minha casa, e acredito na energia que nos move, nos conduz para sim nossas escolhas.

Intervalo: Uma vez, numa aula sobre a questão “arte-artesanato”, o professor Kenedy Piau (companheiro da Jacqueline) comentou que você já teve dúvidas sobre a potência artística do seu trabalho. E a gente sabe, também, que para as mulheres muitas vezes é difícil se afirmar como artista, ocupar esse espaço. Queria que você me falasse um pouco sobre como você mesma enxerga o seu trabalho, se hoje você se entende como artista plenamente e como foi/como é esse processo pra você.

Jacqueline Almada: Olha só que interessante, a sua primeira pergunta foi nome, idade e profissão, eu respondi artesã e depois mudei, respondi Artista Visual (risos). Isso porque realmente esse entendimento para mim tem sido sim um processo maluco. O Piau me ajudou e ajuda muito nesta questão, especialmente quando me coloca em xeque com essas questões e me faz analisar outros ângulos, com base efetivas nos meus aprendizados e tudo mais. Porém, ainda assim, é um processo que, como todos, demora às vezes um tanto.

Quando iniciei meus trabalhos, fui questionada e julgada, sim, por pessoas da área, principalmente por eu não ter formação. Então, se não tenho formação em artes visuais, meus fazeres devem entrar numa “categoria inferior que seria a do artesanato”, ouvi isso algumas vezes e isso, somado à carga que eu já trazia comigo por realmente não ter terminado meu curso superior, me afetou muito e eu sempre me colocava como menos. Sempre vinha essa voz que hoje vejo que é incoerente. Entendo, hoje em dia, com tudo que aprendi, amém!, que essa não faz mais sentido na minha cabeça!

Mas, como disse, é um processo e faço questão de deixar claro que não tenho diploma na área, mas sou uma artista visual, sim. E quem achar que é artesanato, tá tudo bem também, uma coisa não exclui a outra para mim. Eu tenho passado por muitas transformações, inclusive no meu campo profissional e, portanto, superei a fase de não me enxergar como deveria, de não me dar o valor devido e, sim, sou uma pessoa capaz, crio arte e, portanto, sou sim uma artista.

Para encerrar, deixo uma frase de uma grande amiga, que diz: Ainda bem que a gente não fica só véia, também fica sabida”!!

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