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Queria Nascer Flor: “necessidade existencial de fazer arte”

A palavra Muriquinho, na linguagem popular, significa criança pequena - é um modo de se referir, de falar com uma criança de pouca idade. Clementina de Jesus cantava a versão mais conhecida do Muriquinho Piquinino, uma cantiga da tradição popular que narra essa criança miúda: a criança vem passando na corcunda de um adulto quando o cantador pergunta: “ô parente, aonde vai?”, e o adulto que carrega o muriquinho responde: "pro Quilombo do Dumbá". Enquanto isso, o muriquinho chora, como ele chora, pequenino, e segue carregado pelo caminho.

Cantando o Muriquinho, Rogério Francisco Costa inicia a performance “Queria Nascer Flor”, um ato, ainda em fase de pesquisa, que o ator colocou à prova em algumas aparições no centro de Londrina ao longo da pandemia. A performance nos apresenta essa enorme figura, Leno, que vem sobre pernas de pau vestida de branco da cabeça aos pés, com o rosto também coberto. Primeiro, Leno chora, sentada, um pranto dolorido, a céu aberto. Depois, como em um segundo ato, a figura se levanta, e caminha pela cidade com suas pernas de pau, abanando um turíbulo, em um processo de lenta e duradoura defumação do espaço público. Em todas as suas apresentações, Queria Nascer Flor também foi transmitida virtualmente.

“Queria Nascer Flor faz parte de uma pesquisa solo que desenvolvo há 10 anos. Em março de 2021, o que me impulsionou a realizar esta performance foi a agonia de mais de um ano de pandemia, em um contexto sombrio, que ainda não foi totalmente superado, cheio de restrições e instabilidades financeiras e emocionais. Eu queria fazer alguma coisa, nem que fosse sair e chorar no meio da rua (risos)”, quem explica é Rogério Francisco Costa, criador e ator em “Queria Nascer Flor”.

Esse choro, ele conta, é uma estrutura de cena que costuma utilizar nas intervenções urbanas que realiza com a personagem LENO, que é o objeto desta pesquisa que já dura uma década. “Recuperei a estrutura do choro como uma imagem de impacto, mas meu desejo, desta vez, era transcender o choro. Queria que esse choro levasse a uma outra ação simbólica que tocasse no sensível das pessoas”, ele explica.

“Recuperei a estrutura do choro como uma imagem de impacto, mas meu desejo, desta vez, era transcender o choro. Queria que esse choro levasse a uma outra ação simbólica que tocasse no sensível das pessoas”, ele explica.

Em poucos dias, Rogério produziu um figurino branco com detalhes em roxo, com um tecido cobrindo todo o rosto e uma coroa de flores na cabeça. Esta figura, sobre pernas de pau de 80cm de altura, possui um apelo sensorial, segundo ele, também por manipular um turíbulo no qual queima algumas ervas. “Não sabia muito bem o que poderia acontecer a partir da proposta de levar estas duas imagens de impacto ao passeio público: um choro impotente para lavar toda a dor do mundo, seguido da figura sem rosto, peregrina e silenciosa, com seu bastão e seu turíbulo queimando ervas, rescendendo as vias da cidade, abrindo os caminhos para a sabedoria. Eu não sabia como seria este experimento, mas estava instigado em descobrir meios de continuar fazendo teatro. O que era possível fazer, mesmo com todos os protocolos sanitários?” o ator se pergunta.

Queria Nascer Flor tem esse impacto sobre nós. Não só por ser uma fugira enorme, defumando a cidade, mas principalmente porque parece colocar em ato um desejo que compartilhamos ao longo da pandemia, desejo de expressar de alguma maneira essa angústia coletiva, mas também tão solitária.

Apesar do contexto específico da pandemia, a performance não parece estar separada do trabalho que Rogério constrói ao longo de sua trajetória como ator. A performance é sensível, ritualística de certo modo, delicada, mas também toca o político, acontece na rua, se coloca diante da situação comum, coletiva, a que todos estivemos e estamos submetidos. “Leno / Queria Nascer Flor é uma pesquisa que me ajuda a me situar enquanto artista de rua e abre possibilidades de me manter em movimento. Leno é um andarilho que ocupa o espaço público com a função de limpar o lixo do mundo. Além desta simbologia arquetípica da figura da rua, também há outras camadas que se relacionam com minha trajetória de trabalho e que são sintetizadas na composição de Leno e seus conflitos existenciais”, reflete Rogério.

Performances virtuais e a continuidade de Queria Nascer Flor

É importante destacar que o trabalho tem uma dupla posição. Por um lado, aconteceu na rua, em meio ao centro, aos sábados de comércio aberto. Por outro lado, todas as apresentações foram transmitidas simultaneamente em livres, no instagram e/ou no Youtube. “Eu estava muito inquieto, querendo aproveitar, de alguma maneira, este momento histórico e pensei na possibilidade de experimentar uma performance com formato híbrido, mantendo o caráter de ação presencial ao realizar a intervenção no espaço público, mas com um celular gravando e transmitindo ao vivo via aplicativo Instagram. Desta maneira, a minha relação com o espaço público e as pessoas passantes se manteriam e quem estava em isolamento social poderia acompanhar a apresentação via live. Em nenhuma das vezes que realizei esta performance eu tive equipamentos adequados e boa rede de internet que garantissem a qualidade de captação e transmissão, mas me arrisquei, mesmo assim, com a realidade de equipamento que possuía.”

Hoje, Rogério Francisco Costa segue em pesquisa. A produção, agora, faz parte de um projeto aprovado pelo edital 002/2021 - Bolsa Saberes e Fazeres do Programa Municipal de Incentivo à cultura – PROMIC e, para Rogério, a realização do objeto deste projeto pode facilitar a organização de uma estrutura cênica que ele deseja apresentar em vários lugares, participando de editais de festivais e de outras circulações.

“Em março do ano passado, a vacinação estava avançando e eu estava esperançoso pela retomada das ações presenciais. Queria atravessar as normatividades do dia na cidade, propondo imagens poéticas, aguçando os sentidos, inspirando as subjetividades das pessoas. Na verdade, acho que o que me levou a realizar este trabalho foi a necessidade existencial de fazer arte. É uma questão de sobrevivência, mesmo, ainda mais em tempos difíceis como este. É um compromisso do meu ofício”, conclui.

Para acessar a entrevista Completa com Rogério Francisco Costa clique aqui. Para assistir à performance, você pode acessar o instagram ou o Youtube.

Fotos: Daniel Mancebo; Luli Rodrigues

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