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Palavras como antídoto do fim

Cianureto é o nome dado a um composto químico que tem o
potencial de se transformar num gás altamente tóxico, usado para dar cabo da
vida ao longo da história. Dizem que Carlos Marighella, militante comunista e
símbolo da resistência contra a ditadura no Brasil, carregava sempre consigo
uma ampola — caso fosse
pego, tomaria e não seria torturado pela polícia. 

O que pode parecer mórbido e fatal à primeira vista em Cianureto é, na verdade, o contrário. Não
é sem razão que é de “Não se mate”, inesquecível poema de Carlos Drummond de
Andrade, o trecho escolhido como epígrafe para este livro:

“Carlos, sossegue, o amor

é isso que você está vendo:

hoje beija, amanhã não beija,

depois de amanhã é domingo

e segunda-feira ninguém sabe

o que será.”

Isabela Cunha estreia na literatura assim: brincando com
veneno para tocar na cura; olhando para a morte na tentativa de encontrar a
vida. Afinal, as palavras podem ser uma boa forma de dar fim às coisas. E os
fins também são novos começos. Pelo menos quando estruturados em linguagem.

A escolha por
chamar assim um livro de poesia se explica logo no início da obra, com o poema
em prosa “Vigília”:

“Agora, em algum lugar, uma janela está acesa. A fim de
suicidar o

amargo do coração, organizando, nos móveis da sala, a
desordem

que é da própria cabeça.”

Cianureto talvez não
seja então sobre pôr fim à própria vida, mas sim materializar, via texto
literário, a bagunça de dentro, organizando-a — ou, no mínimo, brincando com ela.

 Nesse e em outros textos, Isabela escreve como
quem espera, projeta, imagina, constrói o futuro, que no hoje parece perdido
entre letras — mas são nelas próprias que o amanhã
se encontra, mesmo quando só projeção: “Agora, em algum lugar, uma janela deve
estar acesa. Esperando que alguma coisa aconteça na rua em que você caminha ou
no fundo da sua cabeça.” 

Isabela dialoga com quem
lê e já de cara oferece suas mãos feitas de palavra, para que sigamos juntas
nessa rua imaginária, esperando o que escapa e o que vem. Afinal, estamos
sempre vivendo como quem espera: “Espera uma resposta, espera solução, um
convite que não vai chegar.” 

Feito uma
oração, em “Prece número 3”, um poema também inundado de esperas, é a esperança
quem nos agarra — e não o contrário:

“Chegará esse dia, chegará

 Em que nós vamos ser melhores, chegará

Em cada festa uma rotina, até cansar

e o amor, destino certo, florescerá, acontecerá, virá
será.

Mas o caminho é uma subida, e até lá

a esperança agarra a gente – muito mais que a gente a
ela.

ela pede, por favor, não me abandone à tragédia

e ela berra, igual a terra, quem me cuide (por favor!).”

Espera-se caminhando. E no caminho
deve haver “outro lugar / um novo isso”. Ou mesmo “A fresta do destino abrindo qualquer pista”. No final das
contas, estamos todos à deriva, perdidos no mar aberto. Mas nada-se. Será que foi o medo e nós é que inventamos
o fundo?  “Acho engraçado ter me
debatido tanto e de repente notar a água na altura das coxas”, se diz em “Anotações
sobre o mar e outras coisas”.

Um dos meus poemas preferidos do livro, “Na impossibilidade
de lhe dizer”, é um bom exemplo de como a escrita de Isabela se faz no limite
entre o que não se pode falar, mas que consegue vir ao mundo apenas pela via da
literatura. Entre o possível e o impossível, faz-se o poema:

“Na impossibilidade de lhe dizer

não beije outra mulher

disse:

dirija com cuidado.

Querendo deixar claro,

com o sucesso que nunca obtenho,

que o desejava seguro, inteiro

talvez um pouco mais do que isso.”

A escrita é então aliada daquilo que não se pode dizer mas
ainda assim se diz, tendo as palavras como aliadas — “que eu não faço, enquanto falo,
nenhum tipo de inimigo”. 

Em
outros poemas, como “Queria ser quando crescer”, o pretérito perfeito indica o
desejo que se arrasta no tempo, cheio de invenções:

“Um universo azul e claro imerso em possibilidades

Uma vida que se creia infinita pra viver

Obra aberta que não aguarda, mas escreve-se a si mesma”

Em “Tenho vontade de conseguir”, aparece bem marcada a
distância entre o irreal do desejo e a materialização do querer pelo uso
hiperbólico dos verbos para dar conta do que não se alcança com facilidade: “Tenho
vontade de conseguir / Querer ser tocada”. Possibilidade, imaginação e sonho passeiam pelos poemas (“Ele disse que não queria me largar
/ eu respondi então não larga. /é que no meu sonho vai sempre tudo bem /obrigada”).

Vez ou outra, há o tropeço
na realidade dura demais, inundada de hojes e ontens e sem prazo de validade
para acabar, como no caso de “Suspeito” — a arma, a favela, o carro e a mulher
desaguam seco no homem (no pior sentido da palavra) e revelam um destino trágico
depois do ponto final — e, infelizmente, no real da vida
antes do poema:

“Todo homem

com seu brinquedo de homem

e sua farda de homem

e seu deboche de homem

Tem uma ideia muito clara

Do que é uma família.

Ao lado de outra ideia,

Oitenta vezes repetida,

Sobre

O negro

Com sua família

negra

Em seu carro

popular

Circulando

Como se fossem gente.”

Na poesia que
dá título ao livro — um longo pedido de desculpas para um
interlocutor que talvez seja eu, talvez seja você —, a vida que vem aparece como uma promessa que nasceu para
não ser cumprida: “sinto azar de estar aqui”; “você desculpe a violência dessas
sílabas”; “Eu perdi a minha fé ainda era muito cedo / Eu vi de toda gente as
costas e cheguei até aqui”; “– E penso, talvez por isso, / que o futuro é uma
promessa /que não nasceu pra se cumprir”:

“Você desculpe a desordem dessa mesa de café

E dessa coisa bagunçada que eu espalho entre os silêncios

É que faz muito eu espero o homem que virá me responder

se há algo que se faça dessa vida que eu rejeito

– pra que assim eu possa dá-la

a alguém de mais talento

que me redima, em memória,

do desperdício que eu fui.”

Ao que me parece, não é o homem quem traz a resolução
esperada do poema anterior, mas talvez a própria autora, na voz de mulher que
está presente também em seus versos; talvez seja o próprio livro essa resposta,
redimindo a memória e fazendo algo mais do pouco e do muito que se pode fazer
com as próprias palavras: 

“Um poema, para nascer, não pode desviar do destino

de ser filho de quem lhe escreve

(e nisso somos iguais, nós e o poema)”

Não há dúvida de que a autoria feminina não surge apenas como
um simples dado biográfico. O poema “Verídica” aproxima a voz lírica do corpo
da mulher encontrado em estado de putrefação na praça — "um corpo igual ao meu".

“Encontraram um corpo enterrado em praça pública.

Um corpo de mulher.

Encontraram um corpo de mulher

Enterrado em praça pública - um corpo igual ao meu.

Encontraram um corpo

Igual ao meu

corpo

Enterrado há 30 dias

(Pelo estado de putrefação)

Encontraram esse corpo,

há 30 dias morto,

sem ter quem lhe desse falta

(sua morte sem um nome

sem ninguém a lhe velar)”

Questões de gênero e de raça aparecem nos textos, como não
podia deixar de ser, já que Isabela escreve a partir do seu lugar de escritora
mulher e negra. Entre tantas perdas, poemas nascem para além da dor; respirando
nos intervalos entre braçadas, indo na contramão da autodestruição ou do fim
causado pelo outro. Um bom exemplo de texto que encara o nascimento depois de
tanto é “Repertório”: 

“A mulher inteira que desejo, essa, que me aparece não em
sonho,

não em carta, não em mapa, mas essa, que tem o livro nas
mãos

enquanto leio, que segura a caneta enquanto escrevo, essa
mulher

é quem finalmente dá sinal de vida – saída de um coma
ancestral.

Deste mesmo coma foram vítimas todas as mulheres
escravizadas

antes de mim. Desde a minha avó e suas irmãs, desde a mãe
delas

até a minha filha, desde o sertão da Bahia e da separação
- o rasgo

vivo no mundo que vocês chamam de pangeia (o que a vocês

parece eterno dá-se um nome que dura para sempre). Para
nós,

entretanto, o que se carrega desde lá é subserviência.
Qualidade

muito admirada nas mulheres em geral, mas que só às
pretas fez

amamentar com amor os filhos que não eram seus.

A mulher inteira que desejo vem surgindo desse túnel, vem
nascendo

desse canal profundo.

Com as próprias pernas.”

Olhando para o passado para honrá-lo e também recuperá-lo,
Isabela escreve como quem diz: a mulher que desejo sou eu.  Mas ela não vem sozinha: desperta “de um coma
ancestral” ao lado das que vieram antes.

Um belo resumo do livro está nestes pequenos poemas-espelho,
que refletem um ao outro como complemento e avesso:

“Às vezes, quando fecho os olhos, a cor que vejo é azul.

Esse azul é às vezes turvo como o fundo de um poço.

Outras vezes é tão claro, que se parece com o véu

que me separa do meu futuro.”

O mesmo azul
pode ser o fim e o começo. Os poemas de Isabela flutuam no tempo, moram no
amanhã — que talvez não chegue, mas que segue como sombra,
implacável, inundado de futuros ainda intocáveis. Mas o tropeço é aqui e agora:
“o presente me parece / o lugar mais escuro do mundo”:

“Esse endereço onde corroemos

O metal da nossa angústia

E construímos com dedicação

Uma futura causa mortis.”

O que vemos no todo de Cianureto é talvez aquilo que a poeta e
ensaísta norte-americana Anne Boyer chamou de escrita anfíbia, um não-gênero
literário do entre-lugar, experimentado por escritoras mulheres, como por
exemplo Ana Cristina Cesar, que encontra na encruzilhada a sua maior potência. As
imagens do artista Maikon Nery contribuem para ainda mais desdobramentos. Nas
fotos, o tempo atravessa o olhar e as coisas: descascado das paredes,
entulhos, manchas, granulações, borrões, sobreposições. De quantas imagens são
feitas a nossa memória e a nossa escrita? Assim também se mede o tempo. 

Cianureto é um livro de poemas? Sim. Mas sem dúvida é também um exemplar híbrido e
múltiplo que alcança a liberdade possível ao ir do poema para a prosa e
resvalar também nas anotações e no diário. Em “Interestadual” é esse tom
diarístico que vem à tona: 

“Não era pôr do
sol, mas também me despedi de R. no estacionamento

da rodoviária.
Certa de que nunca mais o encontraria,

chorei pela
janela do ônibus interestadual. Desembarquei em

Londrina com uma
mensagem sua apitando na tela do celular.

Um vídeo em
looping do meu ônibus partindo.”

Isabela por
vezes escreve como quem reza ou medita. No poema “Mantra”, a voz lírica repete
muitas vezes o que não se deve esquecer: “Endurecer a casca / Arejar o
coração”:

“Endurecer a casca

Arejar o coração

E rezar, dessa vez

De mãos dadas com o mundo

[...]

Endurecer a casca

Arejar o coração

E nunca mais ser fúnebre

Escancarar a vida

Endurecer a casca

Arejar o coração

E transformar o mundo

Em um único possível

Endurecer a casca

Arejar o coração

E construir o horizonte

Em qualquer passeio público”

A revolução dos poemas de Isabela é ao rés do chão — um elogio ao mais dia menos dia,
uma resistência de construir o amanhã com o corpo na rua, olhando o outro e se
deixando atravessar. Para nunca mais ser fúnebre, não basta não olhar para a
morte; é preciso encará-la — e mesmo
assim escolher a vida. 

Cianureto funda na morte um novo início. Um início feito de palavra. Prepare
as mãos e agulhas para continuar daí também costurando e descosturando a linha
do verso:

“Mas eu também te digo, criança, que nada realmente
passa.

Nada realmente se supera - não sem um buraco

em que caiba pelo menos uma linha

e você se surpreenderia com o fato de que uma linha,

quando nos atravessa

é mais do que suficiente.”


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